sábado, 18 de julho de 2009

O Passageiro


É admirável o poder de nossa imaginação.
Às vezes uma imagem, um som, um aroma criam em nós realidades inventadas.
Dirigia calmamente quando, ao parar em um sinal fechado, na pista ao lado parou também uma dessas vans de transporte escolar. Olhei de relance e quase não noto o pequeno passageiro, sentado ao lado do motorista. Era um garoto uniformizado, que pela série cursada indicada na manga da camisa, imaginei ter 10 anos. Não dava realmente para avaliar a idade porque em momento algum vi seu rosto. Distraído que ele estava conversando com o motorista, eu somente vislumbrava seu ombro, a parte de traz de sua cabeça e seu uniforme.
Um uniforme que eu conhecia bem. Um uniforme que fora meu companheiro por sete inesquecíveis anos.
Ao vê-lo assim, rosto oculto, por curiosidade comecei a imaginar como poderia ser seu rosto. Observei o cabelo castanho claro, alourado até, e busquei na mente um rosto que “combinasse” com o que eu via. Esse tolo exercício me fez mergulhar no passado, revolvendo e evocando lembranças.
Com quem poderia ele parecer-se? Poderia ser com um colega de turma?
Prosseguindo nessa insólita busca em minhas lembranças, analisei o feitio da cabeça, com aquele corte baixo de cabelo que todos detestávamos, e nenhuma resposta me vinha à mente.
Em meu cérebro nomes e apelidos rondavam, mas nenhum que combinasse com aquela imagem parcial. Haveria uma semelhança com o Claudio? Não, muito baixo. Combinaria com o Lacerda? Não, ele era mais alto e moreno. Quem sabe...... Eu? Sim, aquela silhueta combinava perfeitamente com um Eu tão antigo que até custa um pouco relembrar.
Confesso que essa observação tocou-me um pouco. Fiz um rápido cálculo do número de anos que separavam presente e lembrança, e surpreso cheguei a sorrir quando comparei os meios utilizados no transporte para o colégio; outrora o velho bonde, agora a reluzente van.
Ainda refletia sobre essa diferença quando um pensamente veio incisivo: e se fosse eu que estivesse ali?
E se eu estivesse começando agora? E se houvesse toda uma vida pela frente, a juventude, amplas perspectivas e oportunidades, ainda que acompanhados da natural incerteza com o futuro.
A questão resumia-se no seguinte: Se fosse possível uma “troca de papéis”, eu aceitaria? Largaria uma vida de experiências múltiplas, em que as conquistas superaram as derrotas, para sentar-me naquele banco, com pouquíssima vivência e singelas responsabilidades? A perspectiva de toda uma longa vida pela frente far-me-ia aceitar a troca?
Eu já concluíra que não aceitaria a hipotética troca quando o sinal abriu. A van afastou-se rapidamente, levando aquele Eu que por um momento existiu. Ele seguiu senhor de sua própria vida e inconsciente do quanto ainda teria que lutar para descobrir seus próprios caminhos.
Respirei fundo, e algumas buzinas já me apressavam quando acelerei para sair e continuar o meu caminho.
Olhei para trás, não do carro, mas da vida e verifiquei a bagagem que eu carregava. Constatei quanta riqueza imaterial eu acumulara e senti-me feliz e recompensado.

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